O CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO REVISITADO: A LITERATURA EM
QUADRINHOS,
O ENSINO DE LITERATURA E A FORMAÇÃO DO GOSTO PELA
LEITURA
A
presente proposta de pesquisa consitui uma ação do projeto maior "Leitura,
Conhecimento e Formação Docente", ganhador do PROFORTE 2011, coordenado
por mim, e estuda o processo de transformação de sete obras literárias, uma
obra de cunho histórico-sociológico e uma peça teatral, todas pertencentes ao
cânone literário brasileiro, em literatura em quadrinhos, sendo as sete obras
representantes de diferentes movimentos estéticos e de momentos e lugares
culturais específicos, cobrindo do Romantismo ao Modernismo, com vistas ao
ensino de literatura e à formação do leitor. São elas: Iracema, de José de
Alencar, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O
alienista, de Machado de Assis, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, Clara dos Anjos, também de Lima Barreto, O cortiço, de Aluísio
Azevedo, Jubiabá, de Jorge Amado, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e O
pagador de promessas, de Dias Gomes, cujas adaptações foram efetuadas,
respectivamente, por Jão e Oscar D’Ambrosio, Rodrigo Rosa e Ivan Jaf, Cesar
Lobo e Luiz Antonio Aguiar, Lailson de Holanda Cavalcanti, Lelis e Wander
Antunes, Rodrigo Rosa e Ivan Jaf, Spacca, Estevão Pinto e Ivan Wasth Rodrigues,
Eloar Guazzelli. Tais apropriações transformaram as obras-fonte, atualizando-as
através da linguagem híbrida quadrinhística, que se constrói pela interação
entre o verbal e o não-verbal. Esses volumes de literatura em quadrinhos
parecem, de um lado, se configurar como estratégias de aproximação entre obras
canônicas da literatura brasileira e o leitor contemporâneo, cujos padrões de
gosto e de consumo de bens culturais obedecem àqueles ditados pela TV, pelo
cinema, pelo computador (jogos, internet etc), o que viabilizaria a circulação
escolar de obras canônicas, e, por outro, assumem a forma de uma nova
narrativa, não apenas verbal, mas uma ordem narrativa que conjuga palavra e
imagem, que brinca com as competências de leitura do jovem contemporâneo, para
quem ler não é mais apenas decifrar vocábulos e combiná-los entre si, mas, sim,
interagir com sons e/ou imagens estáticas e em movimento, para quem o ato da
leitura implica um diálogo entre imaginários que se concretizam em múltiplas e
variadas linguagens. Algumas questões geraram este projeto: a primeira, de
caráter mais geral, se acerca das relações entre as narrativas ficcionais e a
teatral que compõem o corpus desta proposta, veiculadas pelo livro, sua
transformação em imagem e textos curtos, na publicação em HQ(História em
quadrinhos), e o público leitor contemporâneo – a adaptação para os quadrinhos
aproximaria os clássicos literários oitocentistas e novecentistas do leitor do
século XXI? Como? Através da interação texto verbal/texto visual? A segunda,
decorrente da primeira, problematiza o próprio processo de adaptação – haveria,
na transposição das obras enfocadas para a linguagem quadrinhística, um
esvaziamento de seu valor literário? Ou haveria, na verdade, a criação de outra
obra artística, de natureza diferenciada, a cada adaptação? Os quadrinhos não
poderiam ser vistos como outra forma de arte, não apenas verbal, mas verbal e
visual, uma vez que são categorizados por Vergueiro e Ramos (2009) como uma
nova arte, a 9a arte, resultante, enfim, do diálogo entre essas duas
linguagens? As adaptações para HQ não funcionariam como um instigante processo
de revisão do cânone literário e como um eficaz instrumento de ensino da
literatura e de formação de leitores? Surge, então, um terceiro questionamento:
essas possíveis outras obras criadas a partir da adaptação de cada texto clássico
para HQ, em lugar de deslocarem negativamente as obras-fonte, não as estariam
atualizando, na perspectiva de Iser(2005) Martín-Barbero (2003), entre outros?
Essas questões se desdobram ainda em outras, secundárias: a) como se dá a
interação texto verbal/texto visual? b) os quadrinhos poderiam formar o gosto
pela leitura literária e não-literária? c) é relevante, no contexto
contemporâneo, ser um leitor de literatura nos moldes tradicionais, isto é, no
contexto do livro, ou os conceitos de leitor e de leitura podem ser ampliados,
a partir das novas mídias, que constroem novas formas artísticas? d) a Escola
estaria preparada para trabalhar com a linguagem quadrinística, formando
leitores? As hipóteses para essas questões podem ser resumidas da seguinte
forma: as adaptações das obras enfocadas transformam-nas em novas obras, cuja
linguagem, que apela simultaneamente a diferentes sentidos do leitor
contemporâneo, pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela
leitura, mas não apenas pela leitura dos textos canônicos, veiculados pelos
livros em linguagem verbal, algumas vezes ilustrada. Como objetivo geral, este
projeto pretende compreender como a adaptação para a linguagem quadrinhística
dos textos literários supracitados – vista essa adaptação como estratégia
editorial para, concomitantemente, construir uma demanda e atender a ela
(Canclini, 2001) – pode funcionar como instrumento de formação do gosto pela
leitura, de ensino de literatura e de formação de consumidores para livros de
HQ, para os clássicos da literatura brasileira e para outras linguagens e
mídias, impressas ou não. Para tanto, serão analisadas e comparadas as
narrativas ficcionais e a narrativa teatral apontadas acima e suas adaptações
quadrinhísticas, observando-se o processo de adaptação e as estratégias,
construídas no e pelo processo, de maneira a se formar o gosto pela leitura e
novos padrões de consumo de bens culturais impressos. Assim, observar-se-ão os
horizontes de expectativas que provocaram o surgimento dessas atualizações dos
textos oitocentistas e novecentistas, suas organizações estratégicas, sob a
luz, principalmente, de Wolfgang Iser, Robert Scholes, Roger Chartier, Jesús
Martin-Barbero, Canclini, DJota Carvalho, Martine Joly, Vera Aguiar, Paulo
Ramos, Waldomiro Vergueiro, entre outros. Pretende-se que a pesquisa aqui
proposta resulte em um aprofundamento das discussões sobre as relações entre a
literatura canônica, a adaptação para HQ, o leitor e o gosto pela leitura de
textos literários e não-literários.
Justificativa
Nossa
independência política não construiu do nada, de um ano para outro, uma
sociedade caracterizada pela autonomia intelectual. No século XIX
brasileiro, independentemente de o escrito circular no livro ou no jornal,
sua transformação em moeda cultural de troca cotidiana foi o objetivo
comum de toda a nossa elite intelectual. O consumo da cultura impressa
tornou-se capital nessa época. Aumentá-lo era prioridade. Para isso, era
preciso tornar essa cultura impressa não apenas um instrumento de educação
distensa (PINA, 2002), informal: o consumidor educado dentro de
determinados padrões passaria a exigir a permanência desses mesmos padrões. Ele teria as marcas dos textos que
lhe eram impostos, até porque essa imposição não era explícita.
Escritores,
editores e leitores eram partes distintas, mas complementares, do mesmo
sistema intelectual, apenas não partilhavam o mesmo saber prévio. Daí, o
leitor aparecer como uma construção dos criadores e produtores de bens
culturais, daí sua constante introjeção nos textos: buscavam-se
estratégias de educação dessa nova espécie cultural.
Assim,
na década de 1970, Ezequiel Theodoro da Silva e outros professores
pesquisadores fundaram a ALB. Assim surgiu a FNLIJ. Assim, várias
universidades públicas, federais e estaduais, começaram a ocupar-se do
problema da leitura no Brasil. As questões concernentes à formação do
leitorado brasileiro e à construção simbólica e empírica do gosto pela leitura
literária ou não-literária ultrapassam as estratégias de letramento escolar
e demandam um olhar sobre as condições sociais que cercam os grupos a
serem atingidos pelas ações governamentais ou particulares.
Em
termos gerais, a preocupação maior gira em torno da educação escolar, da
inserção da leitura no currículo, da obrigatoriedade da leitura
extra-escola etc. Em todas as séries da escolaridade obrigatória, desde
que finda o processo de alfabetização, gradativamente os professores e
demais gestores escolares percebem um afastamento entre a criança e o
impresso.
Marta
Morais Costa(2009, p.8) categoriza os leitores brasileiros: “Os malnascidos na
leitura buscam, no lixo, na solidão, no livro alheio, o encantamento que
em outros (malnascidos, bem-nascidos, quase-nascidos ou quase-moribundos)
nem teve tempo de existir.” Os malnascidos a que a pesquisadora se refere
habitam as salas de aula urbanas e rurais, públicas e privadas, e não são
necessariamente oriundos das classes sociais menos favorecidas; ao contrário,
muito malnascidos, quase-nascidos e quase-moribundos da leitura são filhos
de famílias abastadas, cuja rotina excluiu o impresso em favor do DVD,
Blue-Ray, TV, Internet etc. Mas não são essas novas tecnologias as
culpadas por essa suposta falência da leitura.
Agora
é preciso ajustar o foco. Quando Marta Morais Costa denomina os não-leitores –
ou maus leitores – como malnascidos, ela o faz de uma perspectiva
acadêmica, para essa pesquisadora, um bom leitor se define por seu
repertório:
A leitura exige, portanto, um trabalho de
percepção, de atenção, de memória, de experiência e de capacidade de
organização mental para que se produzam os resultados de significação,
almejados pelo texto. Não entra, nessa seqüência de competências, a afetividade
(base da identificação). Ela se localiza apenas ao final do processo da leitura
e é um dos tipos de efeito que a leitura pode causar. (COSTA, Op. cit., p.26)
Esse trabalho de percepção e memória,
essa educação leitora, é feito pelo núcleo familiar dos bem-nascidos para a
leitura, pelos professores também bem-nascidos que trabalham nas escolas de
elite. A afetividade, único domínio possível de interlocução para os
malnascidos, é posta pela pesquisadora como conseqüência do processo.
Infelizmente, essa concepção excludente de leitura e de formação de leitores
presidiu (e ainda preside em alguns casos) grande parte das ações
governamentais, articulares, docentes e familiares da sociedade
brasileira.
Muitas questões diretas e indiretas
circundam a pesquisa aqui proposta, num desdobramento e numa reiteração dos
questionamentos arrolados em outro momento do projeto: a literatura e
quadrinhos pode formar o gosto pela leitura? E ler quadrinhos é bom? Quadrinhos
não são “coisas” para crianças que não sabem ler “direito” e para aqueles que
não podem comprar livros? Qual o valor social e artístico dos gibis? O jovem
que lê quadrinhos pode chegar a ser um “bom leitor”, com bom repertório, boa
capacidade de organização mental? O mais importante dos quadrinhos não são as
imagens? E imagem pode formar um “bom leitor”?
Essas e provavelmente muitas outras
perguntas inquietam até hoje os gestores escolares, os docentes, as famílias
das crianças e jovens que freqüentam as escolas públicas e privadas do país,
mais aquelas que estas. Tentando responder às questões, deixarei a primeira por
último. Mãos à obra: é, ler quadrinhos é muito bom, bem, pelo menos, quando se
entende o ato de ler como um ato lúdico e prazeroso. Segundo João Marcos
Pereira Mendonça,
Uma das características mais conhecidas das
histórias em quadrinhos é o seu aspecto ficcional. Pelas características de sua
linguagem e talvez pelo caráter de sua produção que, em sua essência, é de
baixo custo, as histórias em quadrinhos sempre foram um campo fértil para a
criação dos mais diversos, fantasiosos e criativos personagens e histórias.
(MENDONÇA, 2009, p.43)
A ficcionalidade da HQ joga com duas
linguagens, como afirmei anteriormente, a verbal e a não-verbal. Ao ler
quadrinhos, o indivíduo precisa conjugar a imagem e a palavra, e a imagem não
se reduz ao desenho da personagem ou da cena, ela engloba do traço demarcador
da vinheta até o rabicho do balão que acolhe a fala. Claro que o gibi é bem
mais barato que um livro, mas isso não é regra e atualmente os livros de HQ
custam tanto ou mais que o livro literário. Mas voltando ao hibridismo da
linguagem quadrinhística, deve-se ressaltar que é exatamente sua ludicidade que
torna os quadrinhos um excelente instrumento de ensino-aprendizagem. Então, ler
HQ é bom sim, muito bom. Mas usar a HQ como mediadora de leitura exige
conhecimento da técnica que a preside.
Os quadrinhos não são coisas para
crianças com pouca competência de leitura nem apenas entretenimento
barato. Como arte, os quadrinhos têm uma linguagem própria, híbrida,
que mistura elementos de outras artes, como a literária, conforme apontei
acima. Como afirma Paulo Ramos, em A leitura dos quadrinhos,
Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de
uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os
elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente.
Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens. (RAMOS,
2009, p.17)
Na verdade, os pequenos leitores de HQ
precisam dominar as estratégias autorais e editoriais para poderem interagir
com o que lêem. Eles precisam saber que as vinhetas(quadros) devem ser lidas,
no caso das HQ’s ocidentais[1], da esquerda para a direita, de cima para baixo,
essa é a ordem narrativa. É necessário, também, que saibam que os balões e seus
rabichos trazem significados especiais, por exemplo, os balões em forma de
nuvem significam sonhos, os que surgem por linhas pontilhadas indicam
pensamento etc.
Os leitores de quadrinhos devem
entender a importância das cores, até mesmo se o volume lido estiver em
preto-e-branco. O rosto das personagens, com suas marcas de emoção, indicadas
pelas sobrancelhas e pela boca, é fundamental para a interação com a obra.
Portanto, mesmo que se dirijam a crianças, os quadrinhos trazem uma
complexidade que não minimiza a competência de seu público, antes a
amplificam e desenvolvem, por conta dos variados estímulos e desafios
que propõem.
Waldomiro Vergueiro, no texto “Uso das
HQS no Ensino”, ressalta exatamente essa característica da HQ: a junção
entre o verbal e o não-verbal cria outro código, muito mais instigante
que qualquer um dos dois códigos originais por si só. Esse novo nível de
comunicação viabilizado pela HQ constrói uma artisticidade peculiar e dá a
esse gênero uma forte função social: educar brincando. Segundo esse
pesquisador,
[...]a idéia preconcebida de que as histórias em
quadrinhos colaboravam para afastar as crianças e jovens da leitura de outros
materiais foi refutada por diversos estudos científicos. Hoje em dia sabe-se
que, em geral, os leitores de histórias em quadrinhos são também leitores de
outros tipos de revistas, de jornais e de livros. Assim, a ampliação da
familiaridade com a leitura de histórias em quadrinhos, propiciada por sua
aplicação em sala de aula, possibilita que muitos estudantes se abram para os
benefícios da leitura, encontrando menor dificuldade para concentrar-se nas
leituras com finalidade de estudo. (VERGUEIRO, 2009b, p.23)
Pela reflexão de Vergueiro, pode-se
medir a força social e pedagógica que a HQ tem, desde que usada adequadamente,
respeitando-se suas peculiaridades, sua autonomia artística. E é possível,
ainda, esboçar uma resposta para outra daquelas questões arroladas acima: a HQ
tem uma natureza que permite multiplicar as competências leitoras de seu
público. Dessa forma, um pequeno ou jovem leitor de HQ, como resposta aos
estímulos visuais e verbais, desenvolve táticas de interação com outros
gêneros, como a literatura, e tem muitas chances de se tornar um bom
leitor, talvez não um extensivo leitor do cânone literário ocidental, mas,
com certeza, um leitor atento a detalhes, aberto a diferentes formas e gêneros
textuais, capaz de relacionar variadas linguagens e diferentes suportes.
Se os gestores educacionais, os
docentes e os familiares das crianças e dos jovens alcançados pel Escola
entenderem a independência artística da linguagem quadrinhística e usarem os
quadrinhos por si, não como janela para a literatura ou o cinema, por exemplo,
a HQ poderá ter um eficiente uso pedagógico como instrumento de formação do
gosto pela leitura num sentido amplo e aberto. É preciso que as instâncias
escolares administrativas e docentes desvinculem a HQ da literatura e a liguem
ao estudo das diferentes artes. HQ é uma arte, literatura em quadrinhos é outra
arte, literatura outra.
Assim, esta pesquisa se mostra
relevante porque se propõe a discutir esse processo de apropriação de
obras literárias, de um estudo sociológico e de uma obra teatral
paradigmáticas, algumas das quais já publicadas inúmeras vezes em livro,
sem alterações, constantes de programas escolares e que compõem a estante
simbólica da literatura nacional, mas que não alcançam o jovem leitor
de hoje, levando-o a ter prazer com o ato de ler. Estudar o processo de
adaptação dos romances e da peça escolhidos para análise, sua atualização,
seus leitores implícitos e seus possíveis e desejados leitores empíricos
(de carne-e-osso), bem como os caminhos de leitura construídos e implicitados nas
HQ’s resultantes do citado processo, os horizontes de expectativa que interagem
nessa transformação, é uma forma bastante instigante de investigar a
releitura do cânone no século XXI brasileiro, observando os elementos que
o aproximam de nossas crianças e de nossos jovens, bem como uma maneira de
reinventá-lo, a partir das práticas de leitura contemporâneas.
[1] No caso dos mangás, quadrinhos
orientais, a leitura deve ser feita da direita para a esquerda.
Objetivo Geral:
Compreender como (e se) as adaptações
para a linguagem quadrinhística das narrativas ficcionais, do estudo
sociológico e da narrativa teatral, a saber, Iracema, de José de Alencar,
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O
alienista, de Machado de Assis, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, Clara dos Anjos, também de Lima Barreto, O cortiço, de Aluísio
Azevedo, Jubiabá, de Jorge Amado, Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre e O pagador de promessas, de Dias Gomes, cujas adaptações
foram efetuadas, respectivamente, por Jão e Oscar D’Ambrosio, Rodrigo Rosa
e Ivan Jaf, Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar, Lailson de Holanda
Cavalcanti, Lelis e Wander Antunes, Rodrigo Rosa e Ivan Jaf, Spacca,
Estevão Pinto e Ivan Wasth Rodrigues, Eloar Guazzelli, podem funcionar como
alternativa para o ensino de literatura e como instrumento de formação do gosto
pela leitura e de formação de consumidores para livros de HQ, para o
cânone literário brasileiro e para outras linguagens e mídias.
Objetivos Específicos:
- Analisar o processo de interação texto
verbal/texto visual;
- Discutir as implicitações de leitor (Iser) e
de leitura (Chartier), presentes nas HQ;
- Definir os horizontes de expectativa que
interagem no processo da adaptação;
- Investigar as relações entre os textos-fonte,
as HQ e o mercado cultural contemporâneo;
- Apontar o potencial de provocação do leitor e
do gosto pela leitura próprio das HQ;
- Destacar os conceitos de leitor e de leitura
perceptíveis a partir da configuração da HQ e de sua relação com as
obras-fonte;
- Debater a natureza artística da HQ e a
literatura em quadrinhos como uma nova forma literária;
- Investigar como as adaptações quadrinísticas
podem auxiliar no ensino de literatura;
- Elaborar resumos e artigos para apresentação
em Congressos e publicação em periódicos;
- Orientar estudantes de IC, Especialização e
Mestrado, em projetos derivados deste;
- Redigir livro com conclusões da pesquisa.
Revisão de Literatura :
A
riqueza polissêmica da literatura é um campo
de
plena liberdade para o leitor...
Bordini
e Aguiar, Literatura: a formação do
leitor,
p.15
No fragmento posto em epígrafe, Bordini
e Aguiar (1988) colocam o ato da leitura como um ato de liberdade, no que tange
ao leitor. Ao deparar-se com um texto literário, o indivíduo aparta-se das
contingências que cercam seu cotidiano e se abre para o mundo do texto, para as
vivências Outras que lhe são apresentadas a cada página. Relação transitiva,
cada ato de leitura deve processar uma pessoalização do texto: “Não nos é
possível penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso
precisamente o que constitui a leitura.”(SCHOLES, 1991, p.22) Ler literatura,
então, parece poder ser definido como um momento em que o leitor inscreve, em
si, o texto lido. Mas o processo tem uma contrapartida: ele também se inscreve
no texto, uma vez que, ao se deixar ocupar pela palavra, apropria-se dela,
torna-a sua e torna-se ela mesma. Ler implica interpretar e criticar. As
associações que estabelecemos ao ler nos revelam quem somos no e a
partir do texto lido.
O ato da leitura literária, portanto,
não se constrói por um mero processo de decodificação do impresso, pois esse
trânsito entre texto e leitor está situado histórica, cultural, politicamente,
envolvendo, ainda, condicionamentos menores, de ordem psicológica, social,
econômica etc. Adaptar textos literários para novas linguagens e novas mídias
demanda um processo primeiro de leitura.
Para Lielson Zeni,
É possível partir de qualquer obra, produzida em
qualquer tipo de arte, para realizar adaptações em outro meio, outra arte, e
formar uma outra obra. [...]. Ou seja, qualquer elemento que exista no original
pode ser ‘mexido’ na adaptação, em favor da criação de um material
esteticamente interessante. (ZENI, Op. cit., p.130)
A adaptação não reproduz a obra-fonte,
ela a reinventa, de acordo com a linguagem do meio adaptador. Assim, os
adaptadores para HQ – roteiristas e ilustradores – imprimem ao texto-fonte seus
próprios condicionamentos e suas próprias expectativas, desde que adequados,
claro, às expectativas e aos condicionamentos do mercado, previstos e
simbolicamente elaborados pelas editoras. Ler e adaptar literatura podem ser
entendidos como atos que acionam e constroem mundos e vontades. E engendram,
conseqüentemente, padrões de gosto e de consumo de bens culturais impressos.
Aguiar propõe, ao debruçar-se sobre as
contribuições das Estéticas da Recepção e do Efeito, que a conquista do prazer
estético no ato de ler é capaz de construir o gosto pela leitura literária:
O prazer estético nasce, pois, da compreensão do
sujeito com respeito à prática que vive, envolve participação e apropriação. Na
atitude estética, o leitor deleita-se com o objeto que lhe é exterior.
Descobre-se, apropriando-se de uma experiência do sentido do mundo. Diante da
obra percebe sua própria atividade criativa de recepção da vivência alheia.
(AGUIAR, 2008, p.21)
Ao compreenderem-se interagindo com o
texto, o roteirista e o ilustrador e, antes deles, os editores-chefes, se
percebem numa intimidade dantes não imaginada com a obra-fonte, intimidade esta
que lhes permite selecionar episódios e personagens que se adéqüem melhor à
interação de textos verbais/textos visuais, próprias da HQ, ou ainda, lhes
permite, no processo de combinação das situações e personagens selecionadas,
projetar sentidos pertinentes à sua contemporaneidade. Essas duas formas de intervenção
no e filtragem do texto-base, são seguidas de muitas
outras, que reconfiguram e ressignificam as obras canônicas. Assim, elas se
tornam legíveis hoje, isto é, se aproximam das práticas e das
expectativas do século XXI brasileiro, podendo ser utilizadas na Escola, para o
ensino da literatura em diferentes séries e níveis, sem que se descartem as
obras canônicas que lhes deram origem.
As reflexões sobre o ato da leitura,
desenvolvidas nas últimas décadas do século XX e no início deste século
XXI, apontam para, pelo menos, quatro instâncias provocadoras do gosto pela
leitura literária e não-literária: o próprio texto, o suporte do texto, a
escola, as mídias audiovisuais.
Desdobro a discussão pela primeira
possível instância de provocação: o texto literário. Discurso elaborado
sempre sobre múltiplos recortes construtores de uma diferença intrínseca, em
relação aos demais discursos que alicerçam as variadas práticas culturais,
a literatura em si só consegue provocar aqueles que já são iniciados, que
já são habilitados para navegar por suas águas turvas, mas sedutoras.
O suporte do texto literário – o livro,
o periódico, o cordel etc. – tem uma função relevante na relação
obra-leitor, mas implica questões mercadológicas para chegar aos
consumidores: condições de edição, circulação, vendas.As novas mídias e
suas linguagens híbridas, dentre as quais situo a HQ, podem funcionar como
instrumentos de aproximação entre as obras literárias e o público,
atendendo às expectativas de grandes segmentos sociais e conquistando lugar
também na sala de aula. Efetivamente, os quadrinhos invadem o universo do
leitor. A tensão por eles criada, ao fazerem interagir palavra e imagem,
se, de um lado, pode amortecer a capacidade imaginativa do desejado
interlocutor, de outro, pode instigá-la, principalmente no caso pesquisado
por este projeto, em que obras canônicas de nossa literatura são adaptadas para
que se acerquem do universo de leitores infantis e adolescentes, mais
destes que daqueles.
As histórias em quadrinhos que se
apropriam de obras literárias promovem, sim, certa condução do ato de ler,
por concretizarem, no papel impresso, uma leitura já feita. Mas, também,
permitem que os leitores, que ainda não têm um grande repertório a ser
posto em ação no ato da leitura, se identifiquem mais intensamente com as
personagens e suas ações, com a trama e suas idéias.
Ainda segundo Zeni,
A adaptação é uma leitura que se transpõe em
releitura e, com essa releitura, alguns elementos estruturadores do texto de
origem ganham destaque e, por conseqüência, reapresentam a estrutura do texto
original e sua relação com o conteúdo e com a forma, trazendo uma nova, porém
não-definitiva, leitura para a obra original. (ZENI, Op. cit., p.141)
As adaptações de textos literários para
HQ, ao reinventarem as obras-fonte, ampliam as possibilidades de interação
leitor/obra, pois a relação entre palavra e imagem potencializa a ação
imaginária do leitor, uma vez que lhe dá novos elementos – visuais – para
interpretar o que lê. Vale lembrar que o objeto de estudo deste projeto são
apropriações de obras canônicas, cuja linguagem dista, em alguns casos, mais de
um século do mundo contemporâneo, cujos cenários foram imensamente modificados
no correr dessas muitas décadas. As obras-fonte imprimem aos jovens leitores de
hoje uma série de obstáculos que os quadrinhos relativizam. A representação
visual é uma alternativa muito interessante nesse sentido.
Segundo Martine Joly,
Seja ela expressiva ou comunicativa, é possível
admitir que uma imagem sempre constitui uma mensagem para o outro, mesmo quando esse outro somos nós mesmos. Por
isso, uma das precauções necessárias para compreender da melhor forma possível
uma mensagem visual é buscar para quem ela foi produzida. (JOLY, 1996, p.55)
Para quem as adaptações dos clássicos
literários para HQ foram criadas? É claro que não se pode dizer que
exclusivamente para crianças e jovens – não há um mecanismo censor que impeça,
por exemplo, esta doutora em literatura que propõe este projeto de comprar e
ler as referidas apropriações. Mas o leitor desejado pelas editoras, a fatia
do mercado que elas pretendem alcançar, corresponde aos adolescentes
que, nas escolas, são obrigados pela grade curricular a conhecerem as obras
canônicas que compõem a literatura brasileira. O interessante é que nesse jogo
de construção simbólica e empírica do gosto pela leitura e de hábitos de
consumo do impresso, essas adaptações propõem novas obras, representantes da 9ª arte,
e novas formas de se ler literatura.
O leitor que lê os quadrinhos que
compõem o corpus deste projeto toma conhecimento de histórias
adaptadas, ou seja, ele é conduzido pelo olhar de um ou de vários Outros,
leitores primeiros das obras-fonte – o roteirista, o desenhista. Mas o jogo
instaurado pelos quadrinhos pode convidá-lo a potencializar o circuito da
visualidade e a visibilizar o campo da palavra, da imagem
verbal. E a própria visualidade pode permitir-lhe reinventar o lido e
reinventar-se a partir do lido.
As novas mídias, como a TV, o cinema,
os quadrinhos, entram no circuito da formação do gosto pela leitura literária
construindo um espaço paradoxal, mas eficiente. DJota Carvalho afirma:
Há dezenas, talvez centenas, de “quadrinizações” de
obras literárias. Isto é, percebendo a facilidade que crianças e adolescentes
têm com as HQs, os cartunistas adaptaram as histórias originais para
quadrinhos. É claro que isso não deve ser encarado como uma forma de substituir
o livro, mas sim de incentivar a leitura. (CARVALHO, 2006, p.94)
Este projeto concorda com a última
afirmação de Carvalho, mas fazendo uma ressalva, que especifica melhor a idéia
de leitura: uma das questões propostas aqui para discussão concerne ao valor
intrínseco da leitura de HQ. Será que as histórias em quadrinhos seriam um
primeiro degrau para a construção do bom leitor, nos moldes
canônicos, ou seriam uma nova forma, uma linguagem diferente, mas não menor,
para a construção de um texto artístico, que demanda um interlocutor com
competências diferenciadas? Ou melhor: as HQ’s valeriam por si, como arte, ou
estariam a serviço da desprestigiada literatura clássica brasileira?
Essas adaptações, vale ressaltar, jogam
com nossa tradição de oralidade, como José de Alencar, Manuel Antônio de
Almeida, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Jorge Amado e Dias
Gomes jogaram, ao tornarem a linguagem literária menos formal e mais próxima do
cotidiano dos leitores (PINA, 2002, 2008a, 2008b, 2008c, 2012a, 2012b;
GUIMARÃES, 2004). Jogam, também, com as expectativas de diferentes grupos
leitores, confrontando as imagens construídas pelas variadas linguagens. Elas
revelam, pelo apelo da cor, da forma, da concretude imagística, o jovem leitor
a si mesmo e ao seu Outro maior e mais poderoso – o adulto, seja o pai, a mãe,
o professor.
Como sugere Núbio Delanne Ferraz Mafra,
"O enquadramento, o lugar e o olhar de quem narra são fundamentais numa
HQ."(MAFRA, 2003, p.98)Os quadrinhos, através das técnicas que casam texto
e imagem, invadem o leitor e deixam-se invadir por ele, estabelecendo caminhos
alternativos, lúdicos, de ler a ficção, o mundo e a si mesmo no mundo.
Os textos sempre se relacionam com os
sistemas dominantes. “Ensinar” a ler textos literários e não-literários, então,
é algo que tem duas faces: de um lado, é levar a um estado prazeroso; de outro,
é formar indivíduos que atuem na coletividade segundo padrões desejáveis a seu
lugar na sociedade. Entendo, com Iser, que o texto ficcional verbal encena
mundos e constrói-se como jogo, a partir dos atos de fingir que potencializam,
pela interação, o imaginário do escritor e, em outro momento, do leitor, o qual
vai realizar a obra lida, de acordo com seu repertório, num processo de ação
imaginária simultaneamente individual e coletivo (ISER, 1999, p. 105-115). Para
ele, “...o texto enquanto jogo é uma contínua transformação de todas as suas
posições.”(ISER, op. cit., p.115) Essa “instabilidade” textual faz do ato de
ler uma instigante movência, o que me permite pensar a literatura, a HQ, a
literatura em quadrinhos e a leitura de livros e revistas, principalmente na
infância e na juventude, como práticas lúdicas, que demandam a liberdade
imaginária para suas possíveis e sempre precárias concretizações.
Johan Huizinga trabalha com a
importância do jogo na vida social:
As
grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início,
inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse
primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar,
ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas,
defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação
elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando
com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse
constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de
toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de
palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo
poético, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 2001, p.7)
Para fazer um leitor, isto é, para
criar em alguém o gosto pela leitura literária, tornando-o um consumidor de
livros, revistas etc., os escritores e os editores precisam jogar com o público
que pretendem alcançar, criando um mundo à parte, um mundo mágico, composto de
aventuras fantásticas, ou um mundo de aventuras históricas ressignificadas, ou,
ainda, um mundo já ficcional, mas que, reinventado no processo de adaptação
para uma linguagem híbrida, torna-se novo e sedutor. Assim, esses mediadores de
leitura desafiam os variados possíveis interlocutores, mostrando que ler é
diversão, que é uma prazerosa brincadeira, para adultos, jovens e crianças. E,
como em toda brincadeira, a tensão de reinventar a vida é fundamental: essa
tensão que preside o jogo é que funcionaria como instrumento de provocação dos
leitores, como meio de fazê-los gostar de ler.
No âmbito estritamente literário, tal
tensão preside o ato interpretativo. Wolfgang Iser afirma que "Toda
interpretación transforma algo em outra cosa."(2005, p. 29). Mas, trazendo
essa reflexão para o universo midiático de hoje, e para o âmbito desta proposta
de pesquisa, os editores, roteiristas e ilustradores lêem os escritores cujas
obras formam o corpus deste projeto e levam sua leitura, isto
é, sua interpretação, para os jovens leitores contemporâneos, que ainda estão,
formando seu gosto e descobrindo o prazer de ler. Eles desdobram a tensão
interpretativa, transformando-a em desafio a ser vencido de forma prazerosa e
divertida. Nesse processo, eles convertem o texto-fonte em outro texto, o que é
potencializado pelo jogo entre verbal e não-verbal próprio das HQ’s.
Alessandra El Far, em O livro e
a leitura no Brasil, aponta que as maneiras de ler e os tipos e objetos de
leitura são práticas culturais que respondem a provocações históricas. Segundo
ela, Se alguns tomam um livro entre as mãos para melhor conhecer o mundo
ao seu redor, (...), muitos entregam-se ao prazer da leitura por diversão ou
simplesmente pelo gosto de ver impresso no papel um arranjo ilimitado de tipos
gráficos."(EL FAR, 2006, p. 64) Essas diferentes maneiras de apropriação
de cada produto impresso resultam de um processo de interlocução não apenas com
o texto, mas com seu suporte também.
Fazer boas adaptações dos textos
clássicos da literatura é uma ação nada "inocente": se um leitor
tomar as narrativas ficcionais e a narrativa teatral escolhidas para estudo
nesta proposta de pesquisa e as lê por seus próprios olhos, negociará com o
texto, no processo de construção de significados, tendo como parâmetros seu
repertório, suas expectativas - isso implica afirmar que esse leitor vai se
insinuar na obra de acordo suas possibilidades.
Por outro lado, ao ler suas adaptações
para quadrinhos, o leitor não estará dialogando com as obras-fonte, mas com as
narrativas dos editores, roteiristas e ilustradores, que introjetarão na obra
seus valores, seu mundo, sua percepção da vida. É muito mais que atualizar
a linguagem: é construir outros contos, jogando com o texto-base, de
maneira a dar conta da perspectiva desse novo construtor.
Como aponta Jean Foucambert, "Ler
é um comportamento integrado aos diversos aspectos da vida e que é aprendido
através deles..."(FOUCAMBERT, 2008: 154). Para ser leitor, a criança, o
jovem e o adulto não precisam apenas ler o livro, podem ler gibis, cordel,
jornal etc. Ler é parte da vida contemporânea. Ou, pelo menos, pode vir a ser.
Assim, entendo que as adaptações dos
clássicos para HQ podem, sim, entrar com grandes vantagens no infinito jogo da
formação do gosto pela leitura literária e não-literária na contemporaneidade,
acercando-se não apenas dos jovens leitores, mas viabilizando a interação com
diferentes segmentos etários e sociais do potencial leitorado brasileiro. E
isso não por serem portas para o domínio do cânone, mas por serem novas e
instigantes leituras dos clássicos, atualizando-os, trazendo-os para o mundo
dos malnascidos, bem-nascidos, quase-nascidos e quase-moribundos, consumidores
das novas tecnologias, com padrões de gosto que privilegiam a interação entre
múltilpos códigos, diferentes suportes, variadas linguagens.
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