Os dois
mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos
andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem,
acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a
verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi
simples:
- Sim,
já beijei antes uma mulher.
- Quem
era ela? perguntou com dor.
Ele
tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus
da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada
em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos
cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes
quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no
sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo
a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho
do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem
sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida
na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém,
a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que
lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa
fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao
penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se
fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?
Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar.
Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não
sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais
próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada,
penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O
instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos
estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou,
todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de
pedra, antes de todos.
De olhos
fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava
a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era
a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se
saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os
e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a
estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se
de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais
frio do que a água.
E soube
então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida
havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a
havia beijado.
Sofreu
um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe
o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou
para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma
parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão
agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava
de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo
fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova,
era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
Clarice Lispector
Pai contra Mãe
A escravidão
levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições
sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles
era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres.
A máscara
fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha
só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça
por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente
era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam
dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara,
mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez
o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas
não cuidemos de máscaras.
O ferro
ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a
haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada
atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo
que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco
era pegado.
Há meio
século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da
escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de
apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que
servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade
moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.
Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado
no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam
para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel,
e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem
perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios
nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito
físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á
generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez
o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço,
correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor
da lei contra quem o acoutasse.
Ora,
pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento
da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita
das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo;
a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso,
e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso
ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido
Neves, — em família, Candinho,— é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga,
cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito
grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é
o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu
cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não
ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a
atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um
armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do
orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel
de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império,
carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando
veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque
morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter
emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas
lições.
Não lhe
custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia
obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras.
Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava
trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia
com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas
queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam
muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura.
O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos.
Talvez
nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a
tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de
longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la,
deixá-la e ir a outras.
O amor
traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível
marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi — para
lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a página inicial daquele
livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze
meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara,
menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não
negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas
virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
— Pois
ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. — Não, defunto não;
mas é que...
Não
diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram
abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só,
embora viesse agravar a necessidade.
— Vocês,
se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
— Nossa
Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência,
ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de
patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria
era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto
de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o
riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia
agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por
isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico,
deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança;
varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura.
Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
— Deus
nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia
correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do
diagrande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma
vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da
criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe
camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é
certo, ainda que de má vontade.
— Vocês
verão a triste vida, suspirava ela. — Mas as outras crianças não nascem também?
perguntou Clara. — Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda
que pouco... — Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em
que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido
Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito
menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
— A
senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar
comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... — Bem sei, mas somos três. — Seremos
quatro. — Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço?
— Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho,
o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado;
não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa
semanas sem vintém. — Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra.
Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum
resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha
glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e
fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no
batizado.
Cândido
Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores
ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar
longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um
pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e
saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um
escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo.
A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina,
conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e
descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a
gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso.
Não o
apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos.
Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente
ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os
lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes,
meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio
crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou
anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor.
Quer
dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos
prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura.
Comia-se
fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não
tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser
para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde,
via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de
algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em
escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade.
Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande
soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
— É o que
lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o
equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida,
outro emprego.
Cândido
quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples
gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é
que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A
natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de
nascer.
Chegou o
oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração
dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais
amargos.
— Não,
tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto
mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na
última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar
a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra
mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para
beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê?
enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro
na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se
desfazer inteiramente. Clara interveio. — Titia não fala por mal, Candinho. — Por
mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o
melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão
faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar?
E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos
que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem
criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá
não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se
viver à míngua. Enfim...
Tia
Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na
alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia
com tal franqueza e calor, — crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao
marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou
maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que
batia à porta da rua.
— Quem é?
perguntou o marido. — Sou eu.
Era o
dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino.
Este quis que ele entrasse.
— Não é
preciso... — Faça favor.
O credor
entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora;
achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se
dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para
regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra
supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a
retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da
casa não cedeu mais.
— Cinco
dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho
saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com
algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios.
Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas
horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou
recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando
mais que a ordem de mudança.
A
situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse
alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar
aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar
os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.
Teve
ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero
da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro
e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de
Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem
obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam
dormir melhor do que cuidassem.
Assim
sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois
nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica
insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso
comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que
esperasse, que ele mesmo a levaria.
Notai que
era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram
algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite
seguinte.
Naquela
reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte
eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem
mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.
Cândido
Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou
que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da
quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço
derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto
e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico
da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três
dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar
como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com
outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou
para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a
dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai,
não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis
comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade.
Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o
próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada.
Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo
suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a
cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele
beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na
direção da Rua dos Barbonos.
Que
pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo
é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do
sereno.
Ao entrar
na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. — Hei de
entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita
ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos
becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar
à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher;
era a mulata fugida.
Não dou
aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real.
Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos
passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou
o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la
sem falta.
— Mas...
Cândido
Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto
em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a
descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata
fujona. — Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda
voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda
da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir.
Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e
dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz
mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao
contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
— Estou
grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por
amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que
quiser. Me solte, meu senhor moço! — Siga! repetiu Cândido Neves. — Me solte! —
Não quero demoras; siga!
Houve
aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem
passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não
acudia.
Arminda
ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,
— cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza,
ele lhe mandaria dar açoutes.
— Você é
que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? Perguntou Cândido
Neves.
Não
estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera
dele.
Também é
certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua
dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta
a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço,
inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais
tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada,
arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu
ao chamado e ao rumor.
— Aqui
está a fujona, disse Cândido Neves. — É ela mesma. — Meu senhor! — Anda, entra...
Arminda
caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem
mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil réis,
enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada
do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto
de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos
de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas
eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez
sem querer conhecer as conseqüências do desastre.
Quando lá
chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo.
Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com
a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara
a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Agradeceu
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a
casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica,
ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem
mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa
do aborto, além da fuga.
Cândido
Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se
lhe dava do aborto.
— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
Machado de Assis
Negrinha
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”
— “Como era boa para um cocre!...”
Monteiro Lobato
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